Ponto de vista: Uma nação corrupta

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                                                                  Joaci Góes

Para a amiga e grande escritora Gláucia Lemos!

O alemão Max Scheler (1874-1928), expoente da filosofia fenomenológica de Husserl, adotou uma visão panteísta do mundo. Foi o fundador da antropologia filosófica e da sociologia do conhecimento. Como Nietzsche, Scheler, apelidado de o ‘Nietzsche católico, fez uso permanente do termo francês ressentiment, por considerá-lo intraduzível no conjunto das nuanças de significado que lhe conferem propriedade ímpar, devendo ser elevado, por isso, à categoria de expressão autônoma, integrante do jargão técnico filosófico. Para esclarecer o que compreendia por ressentiment, escreveu, aos trinta e oito anos, uma monografia sob o título Ueber Ressentiment und Moralisches Werturteil (1912), (Sobre o ressentimento e o julgamento moral dos valores), onde apresenta a inveja como seu poderoso agente gerador. Segundo Scheler, enquanto a palavra ressentimento, tanto em alemão quanto em inglês, tem um significado que exprime a possibilidade de alívio ou diminuição, a palavra francesa exprime irreversibilidade. Ressentiment seria um ressentimento crônico, em que o fato gerador da emoção provoca seu reviver contínuo, machucando a alma, e afastando cada vez mais o ressentido do desfecho que anseia, ao tempo em que se corporifica o sentimento de hostilidade. 

Scheler sustenta que a “inveja nasce de um sentimento de impotência em alcançar um fim, pelo mero fato de que alguém já o possui”, portanto, quando a impossibilidade de conquistar um objeto desejado for causada por alguém que passa a ser odiado. A percepção de ser forçado a ocupar uma posição inferior ao próprio merecimento compõe o universo ecológico da inveja. Trata-se de uma paixão que tem “uma causa determinada”. Se o objeto da inveja passar à posse do invejoso, cessará a inveja. Com efeito, o invejado é visto como praticante de um ato voluntário contra os interesses do invejoso. Esta desilusão, associada ao sentimento de impotência, é essencial para o brotar da inveja. Quanto maior for o sentimento de impotência, maior e mais temível será a inveja. Por isso, quanto mais próxima a privação estiver da natureza do indivíduo, maior será a inveja porque o invejoso, impotentemente, objetivará apossar-se da própria existência do invejado. Diz Scheler: “O tipo de inveja que dá origem ao ressentimento máximo é a dirigida contra o ser essencial de uma pessoa: inveja existencial, que é inspirada nem tanto pelo que a pessoa invejada tem, mas pelo que ela é, intrinsecamente. Se esta inveja falasse, tartamudearia: ‘Eu poderia perdoar tudo, menos o que você é, nem o fato de que eu não sou o que você é: o fato de eu não ser você’. Tal inveja, desde o início, nega à outra pessoa sua existência mesma, o que leva o invejoso a sentir-se fortemente oprimido e ultrajado”. 

Termo cunhado por Nietzsche, ressentimento é, no sentido scheleriano, uma “intoxicação psíquica” originária do ódio, vingança, inveja e outros sentimentos negativos, cronicamente reprimidos, sendo a repressão – impeditiva da expressão desses sentimentos-, considerada fator essencial à sua constituição. Há repressão, “quando não há lugar para uma vitória moral (uma vingança ou um pedido formal de desculpas, por exemplo), ou quando não se pôde reagir com insultos, gestos obscenos etc…” 

Scheler distingue a vingança da pronta reação. Na vingança, o ataque ocorre depois de algum tempo transcorrido da agressão percebida. Neste lapso de tempo, o invejoso rumina as diferentes emoções que se fundem para produzir o ressentimento. 

A coluna vertebral do pensamento scheleriano é que a ética é afetada pela inveja. Qualquer modalidade de ressentimento intoxicado com inveja incapacita o indivíduo a alcançar um padrão ético elevado, porque o sentimento invejoso engendra um processo de racionalização que culmina, sempre, por negar valor à pessoa invejada, injuriando-a, diminuindo-a, degradando-a. O sentimento de impotência do invejoso leva-o a negar valores objetivos e a subverter sua hierarquia. Esta subversão de valores conduz a uma falsa moralidade, “característica dos tempos modernos, que tem origem no ressentimento que permite a vitória dos menos capazes, os párias da espécie humana”. 

*A razão pela qual a inveja deve ser condenada não é porque seja autopunitiva ou antissocial, mas porque ela subverte a ordem moral no indivíduo e na sociedade. 

Joaci Góes – TRIBUNA DA BAHIA

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